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quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Análise do poema Sobôlos rios de Camões

O poema “Sobolos rios” de Camões possui uma intertextualidade que nos conduz a um diálogo com a história mundial, com a bíblia, com Santo Agostinho e com a filosofia platônica. Essa polifonia revela a dualidade de Camões: céu x terra, graça x pecado. A sua lírica em “Sobolos rios” é um canal que nos leva à interminável, dialética entre o celeste e o terreno. A via pela qual discorre esse manancial é a filosofia de Platão que caminha separada, mas que num certo ponto do poema se condensa ao pensamento cristianizado de Santo Agostinho.
Os caracteres gerais da lírica de Camões revelam uma grande relação entre eu-biográfico e eu-lírico. A essência camoniana, como poeta, parece encharcar suas poesias. O eu-lírico é uma voz do próprio poeta, haja vista muitos poemas terem sido construídos rememorando paixões, amores e decepções que tivera na vida.
O diálogo que o poema faz com a história, ou com a própria vida do poeta serve de componentes ou fragmentos de matéria prima para a construção da obra. Camões, por muito tempo, ficara distante de Portugal. Foi à China e por algum tempo trabalhou nesse país. Mas, foi na África que viveu parte do seu “exílio”, longe de pátria e da sua gente, cantando as saudades de Sião, que por hora estava distante. Por longos anos Camões viajara em combates. Camões era um peregrino e um desterrado em boa parte da vida. Sobolos rios traz um eu – lírico saudoso de sua terra, de sua origem. Dessa forma, observamos uma relação entre vida e obra de um autor exilado. O engenho de Camões prossegue quando traz o diálogo com a história santa da terra de Israel. O eu-lírico se coloca como exilado em solo estranho. A própria sagrada escritura serve de apoio para ratificar a purgação e o sofrimento dele. Entra, por isso, o conflito interior entre a realidade terrena e a celeste. Nessa perspectiva ele opta por uma das realidades ao longo do seu lirismo saudosista para alcançar seu designo, o céu.

Babilônia e África:

“Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, que minha mão direita se paralise! Que minha língua se me apegue ao paladar, se eu não me lembrar de ti, se não puser Jerusalém acima de todas as minhas alegrias” (Salmo 136, 5.6)
O povo judeu foi deportado para Babilônia em 580 a.C. Esse povo sofria e chorava às margens dos rios que cortavam a Babilônia. Milhares de Judeus esperavam o dia em que Deus, mais uma vez, fosse lembrar-Se deles e reconduzi-los à Terra Prometida. Conforme as profecias do profeta Jeremias (cap.25,12), o tempo do cativeiro foi de 70 anos.

“Terra bem aventurada,
se por algum movimento
d’alma me fores tirada,
minha pena seja dada
a perpétuo esquecimento.
A pena desse desterro,
que eu desejo esculpido
em pedra, ou em feno duro.
Essa nunca seja ouvida
Em castigo de meu erro.”
(Versos 181-190)

Os dois fragmentos revelam o exílio, tanto do povo judeu que ficou exilado na Babilônia, quanto de Camões que passara 14 anos longe de sua terra natal, sofrendo a saudade da distância, as dores daquela Babilônia infernal. O tédio impregna todo o ser do eu-lírico. As lembranças, memórias do que vivera parecem destruir seu mundo interior. O corpo, a matéria sofrida e cansada pelas circunstâncias, a dura vida na terra de dor, de angústia, nem cantar os aliviaria. Se a lembrança, memória do passado, lhe afagava com o bem , o presente lhe causava um mal ao corpo.
O mundo sensível está fadado à efemeridade, as intempéries da vida; o exílio, a doença, as guerras, o medo; A carne humana, que é fraca, não resiste à dor , ao sofrimento. Nessa perspectiva o poeta inverte a situação. Para vencer o mundo sensível, ele se apega à alma, às coisas espirituais. Consequentemente, confrontam-se o mundo sensível e o mundo inteligível de Platão, que segue a religiosidade de Santo Agostinho. O eu-lírico segue a verticalização da ascese espiritual do mundo inteligível em detrimento do horizontal mundo sensível.
Por isso, o poema “Sobolos rios” traduz a travessia do eu-lírico do mundo material para o mundo espiritual. A transcendência não ocorre de súbito, mas sim através de uma mudança lenta, gradativa e conflitante.
O ponto inicial do poema é a estrofe abaixo:

“Sobolos rios que vão
Por Babilônia m’achei,
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião,
E quanto nela passei.
Ali o rio corrente
De meus olhos foi manado;
E tudo bem comparado,,
Babilônia ao mal presente
Sião ao tempo passado.”
(Versos 1-10)

A disposição anímica do eu-lírico já revela o descontentamento com as situações vividas. As lágrimas brotadas nos olhos são sinais da memória, lembrança da pátria ausente. No salmo 136, os babilônios pediram que esse eu-lírico tocasse a flauta os cantos da terra de Sião. Como poderia cantar, nessa terra, o canto da mocidade? O eu-lírico pendurou os instrumentos do salgueiro. O canto ledo transformou-se em luto, em dor depois que deixou sua terra. A música leda estava consagrada à memória.
Seria, de fato, sem razão ou mesmo sem caráter cantar o vencido, ao vencedor, o canto da terra enquanto o peito se banha em lágrimas.
A dor leva o eu-lírico pelo caminho da iluminação, da religiosidade em detrimento àquela vida material sofrida do plano humano. Repleto de contradições, incertezas consubstanciais ao saber, a experiência, a imaginação, a memória, a razão, a sensibilidade. A macroestrutura do poema vai se delineando tal como é o poeta, de conflitante, refletindo sua confusão anterior: mundo sensível x mundo inteligível, céu x terra. O caminho poético desse poeta das antíteses, dos paradoxos e das contradições, irá, mais uma vez, traçar um caminho de mão dupla de sua personalidade ser ou não ser. Eis a questão que denuncia a maestria de Camões. Um caminho é o mundo sensível, sensorial, que se consuma através das experiências da vida social, a horizontalidade da vida, um caminho seguido por lutas, conflitos, choques culturais, econômicos, lutas pela sobrevivência. Um outro caminho é o do mundo inteligível, das idéias, das reminiscências.
“Sobolos rios” possui esses dois caminhos, que ora se apresenta separadamente, ora se mesclam até um repelir decisivamente o outro. Há, então no poema um afunilamento, uma redução de vias. Com esse fato o mundo sensível se choca definitivamente com o inteligível. O eu-lírico opta pelo caminho mundo inteligível, das idéias, o caminho vertical, por isso passa a buscar as coisas lá do alto.
Seguindo o pensamento cristão de Santo Agostinho e da doutrina católica, o homem tem a Cristo como o arquétipo, padrão de homem a ser seguido. Jesus existe antes de tudo. Por Ele e para Ele todas as coisas foram criadas. A vida de Jesus, sumariamente, está dividida em nascimento, paixão, morte, ressurreição e ascensão. No pensamento Agostiniano o homem precisa passar por esse mesmo processo. E a paixão seria toda a estadia nesse mundo sensível. A matéria, pelo pecado, desde o Gênesis está fadada às conseqüências do tempo e presa ao sofrimento que conota a purgação, regeneração. Justamente o viés tomado por Camões: purgar seu eu-lírico, a fim de que ele se achegue pela morte (do pecado) à ressurreição (da graça santificante), que levará o ser a ascensão, aos céus.
O mundo factual do qual fazia parte Camões também era assaz complexo e contraditório. Um longo período de Idade Média, outro longo período de Renascimento, que em seu final já tendia ao Maneirismo, o qual precedeu o estilo Barroco. A conseqüência dessas confluências era um ser fragmentado, ora muito humano, ora muito celeste, ora apegado ao materialismo da carne, ora rejeitando-a.
Num processo paulatino, elementos opostos do mundo sensível vão sendo absorvidos pelos do mundo inteligível, de forma cristianizada. Vão sendo substituídos: a memória pela reminiscência, a confusão pela paz, a tristeza pela alegria, o amor humano pelo amor celeste, a particular beleza pela beleza geral, já que o bem maior não está nas relações conflitantes da terra, mas na harmonia celeste. A felicidade não está essa Babilônia, terra de dor, está na Jerusalém celeste, terra de glória. Em razão disso, o sofrimento dessa terra de dor é a purificação para se chegar à glória.
A terra bem aventurada é, agora, a pátria celeste. Essa herança é o quinhão dos que lutam para alcançar a saúde, a salvação.

“A Palinódia já canto.
A vós só me quero ir,
Senhor e grã capitão
Da alta torre de Sião
A qual não posso subir
Se me vós não dais a mão.”
(Versos 274-280)

O canto sagrado da Palinódia é ouvido. Os tempos de medo e tristeza se acabam. O tempo da paixão, da passagem para expiação termina. O eu-lírico agora se compraz na ascensão, na verticalidade. As reminiscências da alma, quinhão doado por Deus, venceu as cruezas e perversidades da carne.

“Tanto pode o benefício da
Graça e da saúde
Que ordene que a vida mude:
E o que por vício
Me fez grau pêra virtude;
E faz que este natural
Amor, que tanto se preza
Suba da sombra do real,
Da particular beleza
Para beleza geral.”
(Versos 241-250)

O mundo sensível, embora vasto, é limitado por nossos sentidos, nossas experiências. Nós só conhecemos o que vemos. O mundo é um conceito, uma definição de realidade de cada um. A beleza é relativa, varia de acordo com o tempo, com a pessoa, com os valores estéticos de cada época. O amor é tão suscetível quanto a beleza. Varia, muda de pessoa, de opinião, de crenças. Toda a limitação desse ser terreno é deixada à parte para viver o amor universal, não a aparência, mas a essência das coisas.

“Mas ó tua, terra de glória
Se eu nunca vi tua essência
Como me lembras na ausência?
Não me lembras na memória,
Senão na reminiscência
Que a alma é tábua rasa.”
(Versos 201-206)

Seguindo a dicotomia de Platão: memória e reminiscência, Camões utiliza o termo reminiscência para explicar sua essência divina, filho de Deus, ao relatar filiação através da alma. Pela alma as leituras sagradas o levam a ansiar e desejar o céu, mesmo sem conhecê-lo. O céu, através da alma, se fez presente nele, na essência, na intelecção, na viagem inteligível do mundo perfeito das idéias.

“Que a alma é tábua rasa
Que com a escrita doutrina
Celeste tanto imagina
Que voa da própria casa
E sobe a pátria divina”
(Versos 206-210)

“A palavra de Deus é viva e eficaz, mais penetrante do que uma
espada de dois gumes, e atinge até a divisão da alma com o corpo,
das juntas e medulas, e discerne os pensamentos e intenções do
coração. Nenhuma criatura lhe é invisível.”
(Carta aos hebreus – Cap.4,12)

A explicação camoniana da reminiscência é bem cristocêntrica e, como diz a escritura, a própria palavra discerne tanto o corpo quanto a alma, explicação religiosa para os sonhos da pátria celeste.
Gradativamente, os olhos do eu-lírico foram sendo desviados do horizonte para o céu, o espaço vertical. A passagem do mundo sensível para o mundo inteligível se ratifica quando o eu-lírico se torna capaz de renunciar suas paixões, seus amores. Se, libidinosamente, a “carne” tirou o homem do paraíso, a renúncia dela o leva novamente ao Eldorado.

“E aquela humana figura
Que cá me pôde alterar,
Não é quem s’há de buscar
É raio de formosura
Que só se sabe amar.
(Versos

Com a sublimação dos ideais, os conflitos, dor e tristeza vão cedendo lugar aos frutos bons da volta ao reino. “Quem semeia entre lágrimas, recolherão com alegria.” (Salmo 125,5) Depois da paixão, passagem de um calvário de dores de um mundo sensível, o caminho do mundo inteligível levou o eu-lírico e, por que não, Camões. A ascensão ao mundo perfeito.



BIBLIOGRAFIA

AMARAL, Roberval Marques do. Profecias bíblicas à luz da história e da ciência.
RCC, Editora Santuário: Aparecida, SP. 2000

CLARET, Martin. Os Lusíadas. SP. 2005

FILHO, Aires da Mata Machado. Camões lírico. Editora Agir, 2ªedição: RJ. 1977

3 comentários:

  1. Olá André. Me chamo Wallace e estou no quinto período de Licenciatura em Português/Literatura. Sua análise do poema Sôbolos Rios foi de grande ajuda. Obrigado.

    walcteles@hotmail.com

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