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quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A Estilística em " Famigerado" de Guimarães Rosa

Em termos gerais, pode-se afirmar que o objeto da Estilística é a expressividade da linguagem. Para alguns teóricos, essa expressividade reside nos desvios da norma. Os desvios, por sua vez, podem dar-se por meio do uso consciente ou mesmo pelo desconhecimento do uso das normas gramaticais.

Desde o período greco-romano, havia uma certa tendência de alguns escritores aderirem a estas formas de escrever, criando certos “desvios” nas normas da língua a fim de implementar certa expressividade, valor criativo.

O fato é que os escritores, não raras vezes, utilizam de forma consciente esses desvios para dar originalidade, expressividade a seus textos. A expressividade é uma marca autoral, é a subjetividade do escritor. Esses desvios realçam e salientam um novo valor, adiciona e dar cor própria ao texto daquilo que seu produtor tenciona. Seja nas palavras ou nas expressões, seja na estilística fonológica ou sintática há sempre uma marca de originalidade que transgride o corriqueiro, o trivial e dá um caráter pitoresco e um novo sentido ao ler um texto, que marca a autoria de um dado escritor.

Por isso, o texto utilizado tem como marca principal a criação estilística. Trata-se do conto Famigerado cujo autor, Guimarães Rosa, instaura uma narrativa com a cor local do sertão, com palavras novas, com a “gramática de ouvido”. Talvez nenhum outro escritor brasileiro tenha ousado tanto estilísticamente no que tange aos “desvios” da norma.
Numa simples leitura dos textos de Guimarães Rosa é possível observar as inovações lingüísticas implementadas por ele.

“Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cava-
leiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e em-
lados, de banda, três homens a cavalo.”

Decerto, seria exaustivo listar todos os recursos estilísticos presentes no conto. Podemos, porém, elencar alguns. Equiparado, cabismeditado, desafogaréu; essas palavras estão inseridas no estudo do processo de criação neológico denominado palavras-valise. Esse processo consiste na redução de uma ou das duas bases das palavras a fim de que seus elementos constituintes se unam para formar um novo item lexical: Uma palavra perde sua parte final e outra sua parte inicial e a partir daí revela-se uma palavra-valise.

Equipado + parado = equiparado ( palavra-valise)

Outro processo existente no texto é o recurso expressivo da palavra formada por neologismo por meio do processo de prefixação. A palavra antenasal com o prefixo “ante” que quer dizer: em frente de, diante de; se junta a locução adjetiva nasal. O sentido que surge daí é “cara a cara” “frente a frente”. Era o diálogo travado entre o médico e o jagunço.


“Sobressaltado. Damazio, quem dele não ouvira? O feroz
Das estórias de léguas,com dezenas de carregadas mor-
tes. (...) Ali, antenasal, de mim a palmo!”

Logicamente, tais expressões instauram um ambiente peculiar ao tema da narrativa, evoca certo falar popular e determinados costumes de seu povo. O diálogo entre o médico e o jagunço revela o erudito e o popular caminhando na narrativa. Não raras vezes, o próprio médico absorve a linguagem coloquial e se aproxima do jagunço. O narrador é o próprio médico, (narrador-personagem), e é ele quem utiliza o termo antenasal; processo estilístico de criação de palavras com os recursos da própria língua.

As figuras de linguagem são na literatura uma forma de embelezar o texto, de experimentar maneiras novas de fazer referência a algo. Seja metáfora, metonímia, sinédoque, comparação, o escritor está sempre servindo-se delas para designar algo que, muitas vezes, apenas um item lexical não é capaz de expressar, de apontar.

“Foi de incerta feita o evento. Quem poderia esperar coisa
tão sem pés nem cabeça?”

A metáfora é uma figura de significação e consiste numa transferência de sentidos dos elementos díspares, ou seja, uma analogia entre eles, uma transmissão de características próprias de um item lexical para outro termo. Os semas de um item lexical passam a compor numa relação analógica entre as referências estabelecidas um efeito de consubstanciação dos semas.

Por isso, a expressão “coisa sem pés nem cabeça” para designar a presença do jagunço é uma metáfora. Os pés e cabeça são as duas extremidades do corpo humano. Uma coisa sem pé e sem cabeça é uma coisa sem começo e sem fim. Sem fundamento (os pés) e sem razão (a cabeça). A presença do jagunço, portanto, metaforiza-se por conotar justamente por ser algo sem fundamento, e sem razão, pois, a preposição “sem” anteposta aos vocábulos nega todas essas características. Deste modo, é sem procedência, e sem motivos lógicos a aparição de uma tropa de cavaleiros à sua janela.

Outra metáfora que podemos citar:

Damazio, quem dele não ouvira? O feroz
Das estórias de léguas,com dezenas de carregadas mor-
tes. (...)

Dizer algo sobre estórias de léguas é o mesmo que dizer grandes estórias; estórias que vão longe, estórias conhecidíssimas pelas redondezas. Há uma transferência de sentido do substantivo “estórias” que são Ca(u)sos ou fatos contados, para o substantivo “léguas” unidade de medida. Guimarães parece querer, por meio dessa metáfora, mensurar a ferocidade do jagunço pela distância que essas estórias percorrem. Essa figura de linguagem esta adaptada ao campo semântico do sertão e a linguagem daquele povo.

As figuras de linguagem são sempre utilizadas tanto na fala quanto na escrita. A diferença é que muitas caíram no uso e tornaram-se mortas, tomadas quase que como linguagem denotativa. Os romancistas e os poetas são os guardiões das criações expressivas, de uma linguagem sempre inovadora que transgride o senso comum. As metáforas, metonímias, eufemismos, comparações são a linguagem em seu uso conotativo, aproximativo, plena de inventividade, porque em muitas situações é impossível descrever algo se não for com esses recursos.

Há algo que não podemos desvincular desse processo estilístico que é a questão do sentido e do significado. O sentido está para a Pragmática assim como o significado esta para a Semântica. A Pragmática estuda a linguagem em uso, nas suas relações intersociais, no processo comunicativo. A Semântica estuda o significado das palavras, do léxico de uma língua.

Por isso quando analisamos textos de escritores e observamos criação, invenção e produtividade na língua, como na criação dos neologismos do “Guima” observamos que o processo segue determinadas organizações lingüísticas. Guimarães Rosa não age de forma inconsequente ou involuntária, ele faz de forma consciente do efeito que pretende produzir.

Queremos nos atentar para o fato de muitas dessas palavras não estão dicionarizadas, mas fazem parte de uma criação da língua. Mesmo que elas não tenham um significado dicionarizado, no texto elas possuem sentidos latentes que é parte do fazer literário do escritor e que nos aproximam de uma compreensão efetiva da construção de sentido da obra. Guimarães produziu os mais expressivos neovocábulos aproveitando a fala do povo simples, do coloquial que ajudam na compreensão da vida e dos costumes daquele povo sertanejo.

Em estado de dicionário, a palavra mantém seus semas, seu significado; algo convencionado que vincula tal palavra a uma outra com conceito semelhante, com certa proximidade de significado. No entanto, quando essa palavra assume função numa frase ou num texto, ela não somente pode evocar a esses significados como também pode adquirir outro sentido em relações estabelecidas no contexto linguístico e social. Tomemos como exemplo a frase:

“Tomei-me nos nervos”

O verbo “tomar” nesse caso não é sinônimo de ‘beber”, “ingerir”, nem o substantivo “nervos” quer dizer uma parte do corpo. “Tomar” nesse caso é o mesmo que “ficar” e “nervos”; nervoso, tenso, com medo. Num texto o leitor precisa sempre se aprofundar numa leitura vertical e não só na horizontal. Vertical no sentido de aprofundar a leitura, sair do nível de língua, área da semântica das palavras e se embrenhar no discurso, campo da Pragmática que atua levando em conta o social a comunicação. Num texto, não podemos somente ficar no nível da língua, faz-se necessário compreender o sentido que as palavras adquirem no seu uso.

Hjelmslev diz que a linguagem é o título de nobreza da humanidade. E por tal capacidade para com a linguagem, compreendemos o fato de o homem agir sobre a língua, criar e recriar palavras e expressões pela língua possibilitar múltiplas formas de produção: prefixos, afixos, desinências e outros procedimentos. É se valendo desse caráter produtivo da língua que Guimarães Rosa inova em sua narrativa e cria seus “famigerados” neologismos, no bom sentido da expressão.
Resumo do trabalho de Pesuisa sobre Língua Portuguesa/Estilística

6 comentários:

  1. Este trabalho é em homenagem à professora Maria Luisa, por suas aulas brilhantes sobre o "Guima".

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  2. Este sim é um fruto de grande dedicação. Que seja de grande valia a todos que dele utilizarem.
    Parabéns, André. Valeu a pena mesmo.
    Deus te Abençoe!
    Edvane.

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  3. Louvável a disposição de criar um blog assim, fruto de trabalhos de pesquisa que, quase sempre, só são lidos pelos professores que os exigem. Que bom! Que seja fonte de pesquisa - mas não de cópia pura - para colegas da área!
    Parabéns!
    Beatriz Feres

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  4. Que bom que tenha gostado professora, vou buscar melhorá-lo ainda mais. E, também espero que sirva para pesquisas, não cópias...

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  5. Estou fazendo um trabalho sobre o conto Famigerado, e através da leitura desse blog, pude clarear melhor as idéias do que devo fazer realmente. Parabéns

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  6. Parabéns, rapaz, pela análise do conto Famigerado. Sou graduanda do curso de letras pela UNEB e estou fazendo um estudo do léxico de "Guima". No meu estudo, há pontos que convergem com o seu no que se refere a linguagem roseana.
    Sucessos!

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