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sexta-feira, 10 de junho de 2011

Ler o mundo (Affonso Romano)


Tudo é leitura. Tudo é decifração. Ou não. Ou não porque nem sempre deciframos os sinais à nossa frente. Ainda agora os jornais estão repetindo, a propósito das recentes eleições, “que é preciso entender o recado das urnas”. Ou seja: as urnas falam, emitem mensagens. O sambista dizia que “as rosas não falam, as rosas apenas exalam o perfume que roubam de ti”. Perfumes falam.

Paixão de ler. Ler a paixão. Como ler a paixão se a paixão é quem nos lê? Sim, a paixão é quando nossos inconscientes pergaminhos sofrem um desletrado terremoto. Na paixão somos lidos à nossa revelia. O corpo é um texto. Há que saber interpretá-lo. Alguns corpos, no entanto, vêm em forma de hieróglifo, dificílimos. Ou a incompetência é nossa, iletrados diante deles? Movido pelo amor, pela paixão, pode o corpo falar idiomas que antes desconhecia.

Portanto, não é só quem lê um livro que lê. Um paisagista lê a vida de maneira florida e sombreada. Fazer um jardim é reler o mundo, reordenar o texto natural. E quando os jardineiros barrocos instalavam assombrosas grutas e jorros d’água entre seus canteiros estavam saudando as elipses do mistério nos extremos que são a pedra e a água, o movimento e a eternidade.
Tudo é texto. Tudo é narração.
Um desfile de carnaval, por exemplo. Por isto se fala de “samba-enredo”. Enredo além da história pátria referida. A disposição das alas, as fantasias, a bateria, a comissão de frente são formas narrativas.
Uma partida de futebol é uma forma narrativa. Saber ler uma partida – este é o mérito do locutor esportivo, na verdade, um leitor esportivo. Ele, como o técnico, vê coisa no texto em jogo, que só depois de lidas por ele por nós são percebidas. Ler, então, é um jogo. Uma disputa, uma conquista de significados entre o texto e o leitor.
Paulinho da Viola dizia: “As coisas estão no mundo, eu é que preciso aprender”. Um arqueólogo lê nas ruínas a história antiga. O astrônomo lê a epopéia das estrelas. Ora, direis, ouvir & ler estrelas. Que histórias sublimes, suculentas, na Via Láctea.
Aparentemente ler jornal é coisa simples. Não é. A forma como o jornal é feito, a diagramação, a escolha dos títulos, das fotos e ilustrações são já um discurso.
Estamos com vários problemas de leitura hoje. Construímos sofisticadíssimos aparelhos que sabem ler. Eles nos lêem. Nos lêem melhor que nós mesmos. E mais: nós é que não os sabemos ler. Situação paradoxal: não sabemos ler os aparelhos que nos lêem. Analfabetismo tecnológico.
A gente vive falando mal do analfabeto. Mas o analfabeto também lê o mundo. Às vezes, sabiamente. Em nossa arrogância o desclassificamos. E penso que analfabeto é apenas aquele que a sociedade letrada refugou. De resto, hoje na sociedade eletrônica, quem não é de algum modo analfabeto?
É preciso ler, interpretar e fazer alguma coisa com a interpretação. Feiticeiros e profetas liam mensagens nas vísceras dos animais sacrificados e paredes dos palácios. Cartomantes lêem no baralho, copo d’ água, búzios. Tudo é leitura. Tudo é decifração. Ler é uma forma de escrever com mão alheia.
Minha vida daria um romance? Daria, se bem contada. Mas bem escrevê-lo são artes da narração. Mas só escreve bem quem, ao escrever sobre si mesmo, lê o mundo também.

4 comentários:

  1. Costumo trabalhar este texto nas aulas de produção textual em uma perspectiva da linguística textual e seus desdobramentos!

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  2. Ótimo texto. Magnificamente bem colocado. Parabéns!

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  3. Muito bom e esse texto!

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